A.
Viciados em progresso, os Estados-nacionais (em associação com as mega-corporações-quase-Estados) vêm promovendo, há tempos, um dos mais acelerados processos de degradação do planeta.
Nenhuma novidade... (Aliás, o blog aqui é feito de coisas óbvias).
Os mitos da história linear, do evolucionismo social, do nacionalismo e da suposta infalibilidade da razão ergueram justificativas de aço, contra as quais se contrapuseram vozes discordantes, que logo eram isoladas em ilhas de "insanidade", "atraso" e "utopia".
Lembrando Marcuse, um dos aspectos mais perturbadores da sociedade industrial desenvolvida é justamente o "caráter racional da sua irracionalidade".
Se liga só:
"[...] no período contemporâneo, os controles tecnológicos parecem ser a própria personificação da Razão para o bem de todos os grupos e interesses sociais -- a tal ponto que toda contradição parece irracional e toda ação contrária parece impossível". [ver "Ideologia na sociedade industrial". Zahar, 1969, p.30].
E o cara disse isso lá nos anos 60...
Hoje vemos que pouco se faz para frear o apetite cancerígeno do modo de produção capitalista. Os EUA não se incomodam em passar por cima do protocolo de Kyoto; o Japão argumenta que não pode parar de caçar baleias por "questões culturais"; e os cínicos teóricos das benesses da civilização ocidental já recuperam, com novas roupagens, as licenças científicas mais estapafúrdias para fazer valer a superioridade dos valores ocidentais.
E por aí seguem devastações ecológicas, genocídios de Estado, terror e insatisfação.
B.
O espectro do século XIX não deixa de nos rondar...
Não consigo parar de farejar imperialismo, colonialismo e teorias raciais mal disfarçadas por filosofias culturalistas.
Na virada XIX-XX, parecia impossível nadar contra a corrente do progresso defendido pelos entusiastas da modernidade. (Como ainda hoje parece improvável a iconoclastia dos ícones do mercado...).
Os positivistas creditavam-se papéis de sábios iluminados, cavalgando no cangote incontestável da ciência. Com base em leituras capciosas das teorias de Darwin, um bando de ávidos intelectualóides da conservação não tardou em aplicar as idéias de "seleção natural" para o meio social. Assim, haveria aqueles seres humanos mais aptos a liderar a humanidade no caminho que iria das trevas à luz (olha o Iluminismo aí também jogando mais areia nesse caminhão).
Poucos, na época, contestaram o mito do progresso. Os que fizeram foram taxados de atrasados, lunáticos, irrealistas.
Kropotkin foi um dos que se indignaram com a afirmação de que, no mundo natural (e, por extensão, no social) tudo é competição. Ainda que imerso no cientificismo de seu tempo, ele ressaltou que, para a sobrevivência das espécies, valem muito mais os exemplos de solidariedade e cooperação. Esse é o tema central de seu "Ajuda Mútua".
Até Marx e os marxistas prestaram como ninguém homenagens à modernidade ocidental. No Manifesto Comunista, uma idéia constante: o capitalismo iria se reproduzir, dolorosamente, mas seria “progressista” e favorável à ascensão da classe revolucionária. A crença na infalibilidade das “leis da história” e a dificuldade em lidar com as descontinuidades faziam com que o mais famoso texto das esquerdas, pelo menos em alguns trechos, fosse um rasgado elogio à burguesia. Se para o socialismo marxista a fase capitalista era historicamente necessária (o que levou Engels a vibrar com a vitória estadunidense na guerra contra o “atrasado” México), valia a pena encarar como "leis" infalíveis o desenvolvimento industrial e a subjugação da natureza pelo "homem racional".
Sente o drama:
“[A burguesia] demonstrou o que a atividade humana pode realizar. Construiu maravilhas maiores que as pirâmides egípcias, os aquedutos romanos e as catedrais góticas. [...] a burguesia logra integrar na civilização até os povos mais bárbaros. [...] Durante sua dominação, que ainda não completou um século, a burguesia desenvolveu forças produtivas mais maciças e colossais que todas as gerações anteriores. Dominação das forças da natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, estradas de ferro, telégrafo elétrico, desbravamento de regiões inteiras [...]”. [“Manifesto do Partido Comunista.”].
C.
Após a Revolução Russa, parece que todos os projetos de sociedade deviam passar por uma centralização desmedida, que quase sempre desembocava numa burocratização do poder e eliminava qualquer participação política mais efetiva do povo.
Tanto o stalinismo totalitário, quanto os fascismos, ou o Welfare State de Roosevelt pós-crise de 29... Tudo levava a crer que as alternativas necessariamente viriam pela institucionalização pelo alto, pelo poder forte, pelo planejamento estatal... Enfim, pela tecnocracia.
Como a base para o bem-estar era medida por índices como crescimento econômico, tecnologia e industrialização, a propaganda tecnocrática girava em torno do "saia do carro, ligue a TV, abra a geladeira e engula qualquer tipo de contestação".
Mas o santo progresso acabou levando todos para mais uma hecatombe (2ª Guerra), além de trazer a sombra incômoda da aniquilação nuclear.
E é no pós-Segunda Guerra que aquelas vozes isoladas começam a se tornar mais espessas. O conforto e a tecnologia não respondiam mais aos anseios dos que queriam mais liberdade, mais prazer, mais humanidade. Ideologias "retrógradas" começaram a fazer mais sentido do que o vazio angustiante de termos que adornavam genocidas em pele de estadistas.
Afinal, tinha-se "liberdade" ou dessublimação repressiva, controlada, manipulada? "Democracia" ou um sistema bem urdido para diluir qualquer participação política mais incisiva? "Igualdade" ou os ditames de um bando de "iluminados" centralizando tudo num partido de burocratas?
Se o apelo a uma forma de existência diferente parecia fazer voltar a roda da história (o que é impossível para quem trabalha com a lógica de que ela é feita de leis e de que anda pra frente), então é justamente o "pré-político" que vem deixar o legado mais marcante para sacudir o pó das velhas ladainhas da esquerda. "Pré-político" porque os sábios de esquerda entendem “política” como um desenvolvimento linear, que vai de uma "consciência sindical" a uma "verdadeira" consciência revolucionária, necessariamente amparada pelo partido, pela ditadura do proletariado, pelo Estado superinflado da eterna "fase de transição" -- onde confortavelmente se acomodaram os ditadores de vermelho.
Aqui, nada como atiçar o velho Bakunin em seu túmulo. Fala, garoto:
"Um partido conduzido por uma vanguarda levará à formação de uma aristocracia governamental que recomeçará a explorar e subjugar os trabalhadores a pretexto de que assim age para a felicidade comum ou para salvar o Estado, um Estado ameaçador, ditatorial e ainda mais absoluto porque seu despotismo se esconderá sob a aparência de um obsequioso respeito à vontade do povo”.
Incapazes de um rompimento mais radical com a lógica iluminista e positivista, os sábios de esquerda não abalam as estruturas do sistema representativo, do Estado, do sufrágio universal, do partido político... reproduzindo/reforçando em seus sistemas essas instituições históricas (que, como tudo que é histórico, têm nascimento, desenvolvimento e podem morrer), quase como leis naturais inabaláveis.
Como bons herdeiros do positivismo, arvoram-se na "verdade" de sua teoria. Alternativas a esse modelo são "anti-científicas", "utópicas", "doenças infantis"...
Como contestá-los se partem de pressupostos tão cimentados? (Aliás, para toda contestação eles mandam logo o rótulo de "ideologias pequeno-burguesas").
D.
Todas essas micro-reflexões de porta de birosca (incompletas, escorregadias, inconstantes...) me vieram à mente depois que vi a ilustração que reproduzo acima, bem característica do que os pensadores da contracultura chamaram de "tecnocracia".
Em linhas gerais, tecnocracia resume uma forma de administração social calcada nos valores mais caros da modernidade: "progresso", "civilização", "ciência", "tecnologia", "Estado"...
No auge da guerra fria, tanto o capitalismo (o mosquito ianque) quanto o "socialismo" (o mosquito de foice e martelo) reproduziam-se tendo como base discursos bem semelhantes – e igualmente sugavam os recursos naturais da mãe terra sem muita cerimônia.
O "inseticida" vinha como alternativa a essas culturas... daí seu apelo contracultural.
Uma alternativa incômoda, crítica, que vinha enchendo o saco desde fins do século XIX, mas que fora, como disse, sufocada pelos ideólogos dos dois Estados mais totalitários da história (subliminarmente totalitários, já que criaram um imaginário social que vomitava palavras-anestésico como "liberdade", "socialismo", "democracia", "igualdade", "bem-estar"...).
Uma alternativa que se reforçou nos movimentos de contracultura dos 50/60/70, na releitura do pensamento oriental, na exigência de uma política cotidiana (democracia direta), na fé em modos menos repressivos de viver (comunidades, amor livre)...
De fato, um legado que foi mastigado, digerido e cagado de maneiras absolutamente distorcidas pela indústria cultural, pelas máquinas-de-fazer-mitos do sistema... mas ainda assim um legado necessário, urgente, que deveria alimentar a contestação atual.
Um legado não morto, não dogmático, não tido como infalível, não elevado ao status de "pensamento de vanguarda", não arrogantemente rotulado de "científico" (como se a ciência fosse garantia de alguma coisa claramente melhor).
Um “legado-parangolé” (fala, Hélio Oiticica!), pra ser reconfigurado, reatualizado, recontextualizado...
Um inseticida que vale como lança-perfume utópico: é preferível ficar alegre-chapado cheirando esses sonhos-sementes (que, por que não?, podem germinar) do que se paralisar-anestesiar com a egoísta cocaína neoliberal do "fim das ideologias" ou com a vodka dogmática das múmias do esquerdismo senil.
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