Ano: 2057. Quatro horas da tarde de um dia qualquer.
E o velho resmungou alguma coisa. Coçou a careca e deu a última talagada numa Ypioca série ouro (uma cachaça barata com 211 anos de tradição...). Lembrou dos tempos de juventude, da realidade e das fantasias. Das festinhas suburbanas, das barraquinhas de caipifruta, do pó de dez, dos beijos de batom vermelho. Das viagens, das vacilações, das vitórias, das derrotas... Uma longa estrada de derrotas.
-- Foda-se! -- disse ele.
Era uma tarde de sábado. Acendeu um cigarro... filtro amarelo, dos mais baratos.
Ele nunca havia gostado de cigarros industrializados, só fumava pra fazer gênero, quando já se sentia bêbado o bastante para aquela fumaça pesada.
Mas hoje ele queria castigar os pulmões e quem sabe começar o vício ali, aos 80 anos.
-- Sempre é tempo de começar alguma coisa... -- filosofava de modo barato, como sempre fez por toda sua vida de bebidas baratas, cigarros baratos, experiências baratas...
Ao fundo um baixo pulsante, um trumpete alucinado, uma bateria histérica, um piano diáfano, uma guitarra funkeada... Botara Miles Davis pra rolar no som. Um disco dos anos 70 do século passado.
Pensou num dinossauro, num pterodátilo... Pensou no frenesi de um pterodátilo sendo cavalgado, numa paisagem onírica de Moebius.
-- Aquelas tardes foram boas.Tardes de sábado, mas de outros dias também -- depois de falar, deu umas três tossidas rocas, cheias de catarro viscoso e fumaça.
Seu sonho de juventude beirou a transição dos anos 90 para a entrada do XXI. Usou blusas de flanela, ouviu o som de Seattle, gravou músicas em K7s, se apaixonou milhares de vezes, amou só uma, jogou atari, tomou xiboquinha, viu Trapalhões depois do Fantástico, bebeu até vomitar inúmeras vezes, queimou trilhões de baseados, riu das piadas do Chaves, tomou alguns ácidos, aprendeu a dirigir num Fusca 1969, cheirou algumas carreiras, planejou viver de uma maneira e viveu de outra, tocou em bandas que nunca saíram do estúdio, fez listas de atividades todo dia 1º de janeiro, jogou apenas 3 vezes na loteria, não ganhou nem sorteio de rifa...
-- Puta que pariu! Ha, ha, ha... cof, cof, cof...
Foi um fodido, mas um fodido que perambulava por algumas tábuas de salvação no meio de um mar de bosta. Nunca teve casa própria, nunca teve fama, nunca teve uma agenda cheia de nomes de mulher, nunca foi bom de bola, nunca foi bom de papo, nunca teve responsabilidade, nunca ganhou dinheiro de verdade, nunca pôde dizer "isso nunca aconteceu comigo", nunca aprendeu a usar os talheres corretos, nunca pediu pra ninguém esperar alguma coisa dele.
-- Foda-se! -- é o que ele falava.
80 anos...
-- Que merda é envelhecer! -- pensava ele...
E ele pensava nisso desde que fez 40, mas sempre agiu com uma voracidade desmesurada... a voracidade dos que querem viver cada dia como se fosse uma vida.
E viveu essencialmente nas margens, dentro de um olhar de lado, escondido nos óculos escuros... Queria ter olhos para observar sem ser observado.
Gostava das tavernas, dos copos de geléia de mocotó, das sinucas com ficha, do varejão filtro amarelo, das tardes empoeiradas nos bairros mais pobres.
Tardes...
E tudo isso sumiu sob seu nariz de batata cheio de cravos. Tudo estava se transformando num grande shopping center, asséptico, maquiado, artificial. Mas a miséria permanecia ali, escondida debaixo dos tapetes da hipocrisia.
Ele que sempre torceu para o sistema se foder, mas viu o capitalismo se metamorfoseando a cada década, contabilizando os ganhos, socializando as perdas para os mais ferrados. Ia morrer sem ver esse filho da puta se escafeder.
Ele que foi o homem-pêndulo, gravitando pelas esferas, se esgueirando das feras, sobrevivendo num terceiro mundo hi-tec, perdendo a religião...
-- "Losing my religion"... -- pensou no som e assobiou a melodia.
E lembrou daquele show do R.E.M, banda das antigas, que viu em 2001.
Pegou as fotos velhas (o velho prazer de ver as fotos de papel, tocá-las, em vez de ficar com a fuça grudada numa tela de computador), espalhou sobre a mesa, deu uma risada saudosa. E viu a cara dela antes do peso dos anos, das rugas, das panças, dos peitos que caem com a ação da gravidade...
-- Porra... envelhecer é uma bosta.
Acabara de chegar do funeral de sua mulher, velha companheira de tanto tempo. Ele que destestava velórios, essa mórbida tradição de "dar o último adeus" a um corpo sem vida, inerte, que não reflete em nada o que a pessoa representou.
-- Tradição estúpida! Na verdade um desrespeito! -- resmungou, dando mais uma talagada na pinga e uma tragada no cigarro filtro amarelo.
-- Fazer o quê? A família insistiu que fosse assim...
Uóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóó...
Lá fora soava o alarme para o ponto crítico de poluição relativa do ar.
E daí?! Ele iria ficar o dia inteiro dentro de casa mesmo.
-- Quando eu morrer, quero que passem fogo logo -- dizia ele para si mesmo.
Cremação, fogo, e cinzas jogadas em qualquer canteiro, qualquer riacho, qualquer poça d'água sem brilho... Tudo haveria de se revonar.
-- Ou que cheirem minhas cinzas pra ver se dá onda... Ha, ha, ha.
Se bem que poderia dar "bad trip".
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E o velho resmungou alguma coisa. Coçou a careca e deu a última talagada numa Ypioca série ouro (uma cachaça barata com 211 anos de tradição...). Lembrou dos tempos de juventude, da realidade e das fantasias. Das festinhas suburbanas, das barraquinhas de caipifruta, do pó de dez, dos beijos de batom vermelho. Das viagens, das vacilações, das vitórias, das derrotas... Uma longa estrada de derrotas.
-- Foda-se! -- disse ele.
Era uma tarde de sábado. Acendeu um cigarro... filtro amarelo, dos mais baratos.
Ele nunca havia gostado de cigarros industrializados, só fumava pra fazer gênero, quando já se sentia bêbado o bastante para aquela fumaça pesada.
Mas hoje ele queria castigar os pulmões e quem sabe começar o vício ali, aos 80 anos.
-- Sempre é tempo de começar alguma coisa... -- filosofava de modo barato, como sempre fez por toda sua vida de bebidas baratas, cigarros baratos, experiências baratas...
Ao fundo um baixo pulsante, um trumpete alucinado, uma bateria histérica, um piano diáfano, uma guitarra funkeada... Botara Miles Davis pra rolar no som. Um disco dos anos 70 do século passado.
Pensou num dinossauro, num pterodátilo... Pensou no frenesi de um pterodátilo sendo cavalgado, numa paisagem onírica de Moebius.
-- Aquelas tardes foram boas.Tardes de sábado, mas de outros dias também -- depois de falar, deu umas três tossidas rocas, cheias de catarro viscoso e fumaça.
Seu sonho de juventude beirou a transição dos anos 90 para a entrada do XXI. Usou blusas de flanela, ouviu o som de Seattle, gravou músicas em K7s, se apaixonou milhares de vezes, amou só uma, jogou atari, tomou xiboquinha, viu Trapalhões depois do Fantástico, bebeu até vomitar inúmeras vezes, queimou trilhões de baseados, riu das piadas do Chaves, tomou alguns ácidos, aprendeu a dirigir num Fusca 1969, cheirou algumas carreiras, planejou viver de uma maneira e viveu de outra, tocou em bandas que nunca saíram do estúdio, fez listas de atividades todo dia 1º de janeiro, jogou apenas 3 vezes na loteria, não ganhou nem sorteio de rifa...
-- Puta que pariu! Ha, ha, ha... cof, cof, cof...
Foi um fodido, mas um fodido que perambulava por algumas tábuas de salvação no meio de um mar de bosta. Nunca teve casa própria, nunca teve fama, nunca teve uma agenda cheia de nomes de mulher, nunca foi bom de bola, nunca foi bom de papo, nunca teve responsabilidade, nunca ganhou dinheiro de verdade, nunca pôde dizer "isso nunca aconteceu comigo", nunca aprendeu a usar os talheres corretos, nunca pediu pra ninguém esperar alguma coisa dele.
-- Foda-se! -- é o que ele falava.
80 anos...
-- Que merda é envelhecer! -- pensava ele...
E ele pensava nisso desde que fez 40, mas sempre agiu com uma voracidade desmesurada... a voracidade dos que querem viver cada dia como se fosse uma vida.
E viveu essencialmente nas margens, dentro de um olhar de lado, escondido nos óculos escuros... Queria ter olhos para observar sem ser observado.
Gostava das tavernas, dos copos de geléia de mocotó, das sinucas com ficha, do varejão filtro amarelo, das tardes empoeiradas nos bairros mais pobres.
Tardes...
E tudo isso sumiu sob seu nariz de batata cheio de cravos. Tudo estava se transformando num grande shopping center, asséptico, maquiado, artificial. Mas a miséria permanecia ali, escondida debaixo dos tapetes da hipocrisia.
Ele que sempre torceu para o sistema se foder, mas viu o capitalismo se metamorfoseando a cada década, contabilizando os ganhos, socializando as perdas para os mais ferrados. Ia morrer sem ver esse filho da puta se escafeder.
Ele que foi o homem-pêndulo, gravitando pelas esferas, se esgueirando das feras, sobrevivendo num terceiro mundo hi-tec, perdendo a religião...
-- "Losing my religion"... -- pensou no som e assobiou a melodia.
E lembrou daquele show do R.E.M, banda das antigas, que viu em 2001.
Pegou as fotos velhas (o velho prazer de ver as fotos de papel, tocá-las, em vez de ficar com a fuça grudada numa tela de computador), espalhou sobre a mesa, deu uma risada saudosa. E viu a cara dela antes do peso dos anos, das rugas, das panças, dos peitos que caem com a ação da gravidade...
-- Porra... envelhecer é uma bosta.
Acabara de chegar do funeral de sua mulher, velha companheira de tanto tempo. Ele que destestava velórios, essa mórbida tradição de "dar o último adeus" a um corpo sem vida, inerte, que não reflete em nada o que a pessoa representou.
-- Tradição estúpida! Na verdade um desrespeito! -- resmungou, dando mais uma talagada na pinga e uma tragada no cigarro filtro amarelo.
-- Fazer o quê? A família insistiu que fosse assim...
Uóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóó...
Lá fora soava o alarme para o ponto crítico de poluição relativa do ar.
E daí?! Ele iria ficar o dia inteiro dentro de casa mesmo.
-- Quando eu morrer, quero que passem fogo logo -- dizia ele para si mesmo.
Cremação, fogo, e cinzas jogadas em qualquer canteiro, qualquer riacho, qualquer poça d'água sem brilho... Tudo haveria de se revonar.
-- Ou que cheirem minhas cinzas pra ver se dá onda... Ha, ha, ha.
Se bem que poderia dar "bad trip".
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