1.
A questão da cultura às vezes é atordoante.
Digo "cultura" algo amplo, que envolva modos de ser, costumes, representações, imaginários, instituições, leis, linguagens, mitologias.
Mas algo que esteja profundamente intrincado às relações sócio-econômicas. Uma cultura que, de fato, confunde-se com o modo de produção característico de dada sociedade.
Uma cultura que perpassa e derruba a metáfora reducionista da "base" e da "superestrutura", a primeira determinando a segunda.
Parece-me claro que tais fronteiras são esgarçadas, os laços entre as diversas esferas -- "econômico", "político", "social", "cultural" -- são bastante enredados.
Certo é que, para entender o ser humano dentro de determinada configuração social, devemos ter em mente a relação de forças contraditórias, a luta de classes ensejando e sendo atravessada pelas questões de cultura.
Entender o ser humano em dada sociedade é uma questão de antropologia social. Um estudo cultural que se detenha também no sentido diacrônico, no sentido histórico.
Não há cultura sem história. E não há história, até agora, sem luta de classes.
2.
Quando Carlos Castaneda recebe os ensinamentos do brujo Don Juan, parece que toda a sua carga cultural do ocidente o deixa um tanto "inapto" a se tornar um brujo, no significado concreto daquela experiência para um índio yaqui.
Ao mesmo tempo, parece-me que há uma certa universalidade da espécie, ao pensar nos efeitos dos "aliados": a "erva do diabo", o "humito". Ou o contato com "mescalito" (o peiote).
A bioquímica contemporânea pode interpretar satisfatoriamente as reações das plantas alucinógenas na mente do ser humano. Mas a resposta simbólica a tal experiência química é uma questão que vai depender do meio sócio-cultural.
3.
A pesquisa de campo de Castaneda e sua experiência como aprendiz de um xamã yaqui deveriam nos abrir determinadas portas da percepção... sem precisarmos lançar mão dos alucinógenos.
Deveriam, pelo menos, abrir uma primeira janela para vermos que, na lógica da cultura hegemônica do capitalismo, o ser humano está cada vez mais se desprendendo do "cuidado de si", um cuidado que deve estar conjugado a uma relação harmônica com o meio social e o meio natural.
A lógica de algumas dessas culturas que ainda resistem deveria fornecer determinados subsídios a uma proposta de sociedade alternativa, uma saída do quadro de crônica miséria e devastação ambiental.
4.
Se a revolução deve mudar as estruturas sociais, ela também deve implodir as estruturas do indivíduo moldado pela sociedade do consumo, da competição, do poder, da intolerância, do moralismo, da violência.
O indivíduo deve respirar, quebrar a casca de alienação que envolve o seu ser. Deve revolucionar-se no mesmo instante em que revoluciona a política, a economia, as relações sociais.
Deve travar um diálogo com a natureza com o mesmo respeito com que trava o sábio Don Juan.
A experiência de culturas soterradas pelos valores do ocidente deveria até mesmo nos depertar para a questão da liberdade de uso de substâncias alteradoras do "estado-padrão" de consciência.
Até que ponto o coletivo poderia, numa sociedade justa, intervir na opção pessoal? Quando a comunidade deveria se mobilizar para combater excessos? Que significados, afinal, daríamos a tais substâncias, que fazem parte da história da humanidade há muitos séculos?
5.
Desafios atordoantes, como disse no início.
As alternativas de esquerda gestadas em nossa sociedade tendem à universalização. Algumas querem impor tal universalização de modo autoritário, de cima.
Parece-me que há, realmente, inevitáveis valores "universais" -- historicamente determinados. Valores ligados à vida, ao amor, a Eros; mais do que à morte, à destruição, à Thanatos. Valores que perpassam diveras culturas.
Como aceitar, por exemplo, a exploração entre seres humanos, os atos violentos e os atentados a vidas alheias em nome de "normas culturais"?
Ou, então, como não gritar contra culturas que querem se impor violentamente, que querem rebaixar etnias ou grupos sociais?
6.
Abaixo fascismos, imperialismos, hierarquias, ditaduras... de qualquer cultura.
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Marcadores: crítica
14 Comments:
Muito legal o texto. Eu acho bem legal essa divisão em números e tópicos.. facilita a leitura.
Eu andava pensando nessas questões espinhosas, como economia, como transformação individual. Sobre a primeira questão tinha uma professora minha que era "marxista" (dessas bem socialistas que dizem que o comunismo não daria certo) e ela ficava confusa sobre essa questão, pois entrava em contradição com ela mesma.. uma hora ela dizia que a infraestrutura determinava a superestrutura e outras ela dizia que existia uma determinação dialética entre ambas. Na verdade me parece que ambas estão intrinsicamete ligadas e a separação que fazemos é mais formal do que tudo. Nessa separação tipicamente humana ambas me parecem estar muito mais numa interrelação mesmo do que numa determinação unilateral (que me parece ser o que você quis dizer também). Se pensarmos então em cultura e de que forma ela age sobre o sujeito, é através de formas multiplas e constantes, atravesamentos que se dão através toda hora através de uma subjetividade própria.
sobre a questão do castaneda depois eu comento =P, mas é mto legal.. eu adoro
é... essa parada do número é mesmo pra quebrar aquele blocão de texto...
o que vc acrescentou aí tem muito a ver com que eu tentei dizer.
gostei deste trecho:
"Na verdade me parece que ambas estão intrinsicamete ligadas e a separação que fazemos é mais formal do que tudo. Nessa separação tipicamente humana ambas me parecem estar muito mais numa interrelação mesmo do que numa determinação unilateral (que me parece ser o que você quis dizer também). "
acho que é por aí mesmo...
um abraço!
Muito bom...
Você falou de antropologia. Seria interessante observar como a concepção de cultura hoje é completamente diferente da concepção de cultura nas sociedades pré-capitalistas. No Egito Antigo, p.ex., a "cultura", como a arte, não era uma esfera separada do resto, algo a ser contemplado nos museus...
A "cultura" nas sociedades indígenas, para citar outro exemplo, é mesclada com o cotidiano, com a vida pública (política) dos indivíduos, com a própria vida produtiva das aldeias (aquilo a que se convém chamar de "economia"). Não existe fragmentação. Costuma-se dizer que a sociedade burguesa é uma sociedade de gavetas, pois não existe intercâmbio entre as atividades (política é política, trabalho é trabaho, lazer é lazer e por aí vai). No máximo um intercâmbio artificial, operado com vistas a reduzir o estresse de determinada atividade (o trabalho, p.ex.). Tem a ver com aquela perda de perspectiva unitária sobre a vida de que fala Debord, própria da comunidade.
Sobre essa questão de "base" e "superestrutura", eu tendo a achar que esse sistema tem alguma validade. O "materialismo histórico" (e o esquema de base e superestrutura) é nada mais, ao meu ver, que uma descrição realista da sociedade moderna. No capitalismo, de fato, tudo foi reduzido a ser um mero "apêndice" da economia, e digo mais, tudo tende a se tornar econômico. A lógica da troca mercantil adentra todas as esferas da sociedade. Na política, por exemplo, temos o mensalão, este grande MERCADÃO de interesses... Na Religião, temos a exploração do dízimo ($$) como sustento de meia dúzida de parasitas sacerdotais e por aí vai.
Só discordo de querer generalizar tal modelo (o de base e superestr.) pela história afora. A sociedade nem sempre foi sociedade do trabalho. Volto a citar as sociedade indígenas de cá: a vida ali, não gira em torno das atividades de "sustento". Tampouco as atividades de sustento (pesca, caça, colheita) são separadas do resto das atividades (cultuais, artísticas, políticas, lúdicas, ociosas etc).
Desculpe se eu sôo meio unilateral. rs
Às vezes eu tenho a impressão que eu insisto muito em algumas questões... mas tá beleza. rs
No geral, o texto tá interessante e bem escrito.
Valeu!
perturbar o coração, o estomago, a pele. Comporta-se, enfim, como uma personalidade parcial”.(ibid).
O contato dos conteúdos conscientes com os conteúdos inconscientes pode estar em oposição diversas vezes, estabelecendo uma dialética, que foi influencia de Hegel no pensamento junguiano, onde a oposição entre os conteúdos da consciente e do inconsciente pode gerar um terceiro termo, ou equilíbrio, que supere – e contenha - os dois elementos conflitantes, nas palavras de Jung “para que se tome conta do processo de individuação, é preciso que a consciência a consciência seja confrontada com o inconsciente e se chegue a um equilíbrio entre os opostos”.(Jung, 2001).
Entremos nesta constatação de Jung na questão do processo de individuação, no qual, podemos sair do determinismo infantil proveniente do complexo de Édipo nas teorias psicanalíticas. A individuação (...) FALAR.
Jung desenvolveu a idéia de sincronicidade, que rompe com os pensamentos causais, onde “há uma simultaneidade no tempo entre dois fenômenos, um subjetivo e outro objetivo, que configurem, para uma pessoa, um sentido especial (significativo). Mas dois fenômenos, entrei si não se relacionam de forma causal.” (Nunes apud Melo, 2002 A). Para a psicologia de Jung, “a causalidade é fundamentalmente um ‘pré-conceito’ da cultura ocidental, idéia que, para Descartes, é garantida pela noção de imutabilidade de Deus ( cf. Franz, 1980). A vida é basicamente acausal, mas a causalidade complexa não é descartada.” (Melo, 2002 A).
Voltando ao titulo do tópico, hermenêutica se refere a “um saber que contextualiza o autor, em termos de suas implicações, dentro da ciência em geral, articulando-o com as subjetividades que se ocupam com as questões similares a ele”. (Melo, 2002, A). E seguindo com Cardoso “A perspectiva hermenêutica supõe uma decodificação interpretativa do universo dos signos, nos discursos, e uma posição critico -interpretativa dos discursos ideológicos. Ela induz a uma tomada de consciência do sentido oculto nos sentidos aparentes, leva a uma interpretação do universo do simbolismo e a dissolução das ilusões da consciência. Em certo sentido, a hermenêutica desmistifica a razão, denunciando a consciência falsa e as simples ideologias. Da mesma forma, já não se podem mais ignorar os pressupostos paradigmáticos que se encontram na raiz de qualquer posição cientifica”. (Cardoso, 2002).
A hermenêutica vai ser uma “filosofia do sentido” (ibid) que tenta procurar a intencionalidade do pensamento, tentando compreendê-lo, “Como exegese, ela se constitui em uma disciplina que se propõe a compreender um texto, de o compreender a partir de sua intenção” (ibid), a origem de “hermenêutica vem do Deus Hermes (Damião apud Melo) que é essencialmente passagem, mudança, transformação e ‘contatos entre elementos estranhos’ (Vernant apud Damião). Em síntese, a hermenêutica relaciona-se com as ‘estranhezas’, com os momentos de encruzilhadas, com as bifurcações”. (Melo, 2002 A).
Na sua realização ela procura “a suspensão e o afastamento da atitude natural. Uma vez realizado isso, empregaremos o método filológico usado na analise de textos difíceis”. (ibid). Podemos ainda ampliar o conceito de hermenêutica dizendo que “a perspectiva hermenêutica procura identificar entre as correntes filosóficas existentes, quais aquelas que inspiram o autor, de forma episódica ou permanente; e quais aquelas as quais o autor nunca aderiu”. (Cardoso, 2002).
Sobre a visão substancialista, uma vez perguntando por Howe : “Qual extensão dessa esfera, que é o self quadrimensional? (...)” Jung responde “Trata-se realmente de um
A.Guerra:
pefeitas observações sobre a "cultura" nas sociedades antigas.
gostei disso:
"Costuma-se dizer que a sociedade burguesa é uma sociedade de gavetas, pois não existe intercâmbio entre as atividades (política é política, trabalho é trabaho, lazer é lazer e por aí vai). No máximo um intercâmbio artificial, operado com vistas a reduzir o estresse de determinada atividade (o trabalho, p.ex.)."
sobre a metáfora "base-superestrutura"... concordo em parte com o que vc disse. realmente é difícil não vermos que tudo é "mercantilizável". em nossas críticas ao sistema, sobressai de fato essa relação, essa "determinação" a priori da economia.
mas, pessoalmente, acho que a metáfora pode ser derrubada sem prejuízo da análise. mas é discussão espinhosa, longe de se conseguir um consenso...
abs!
fernador:
seu comentário traz coisas bastante interessantes.
gostei dessa questão que Jung levanta: relação sincrônica de elementos conflitantes, geração de um terceiro termo ("equilíbrio"... que vejo aqui como um equilíbrio sempre dinâmico), sem "determinismo infantil" nem "causalidade".
tendo a ver a questão "base"-surestrutura" nesses termos.
valeeeeeeeeeeu...
uhauha
meu comentario saiu do nada, era uma coisa que ia colar em outro lugar.. bem, mas se saiu assim deve ter algum sentido.. na verdade o comentário que ia fazer não apareceu =P
rs!
tinha achado meio estranho mesmo...
mas achei que podia até ser algum estilo fragmentado :-)
mas tudo fez sentido! rs...
abs
Conversando com meu novo orientador sexta ele me disse uma coisa q estou pensando: "detesto metáforas biologizantes ou mecanicistas. Isso reduz, diminui. Prezo a liberdade acima de tudo". E ultimamente - bem, antes de tudo o q ocorreu - era exatamente assim q eu estava me sentindo: presa num referencial onde eu passava mais tempo me justificando do q me valendo deste mesmo referencial.
Concordo com tudo o q vc disse. Qto a nossa amiga metáfora...os próprios Marx e Engels disseram q não tiveram tempo de explica-la melhor...
Mas mesmo não concordando com a metáfora, é muito complicado enxergar a totalidade. Tendemos a ver como inflência coisas q são constitutivas.
Bjs
"é muito complicado enxergar a totalidade."
é aí que tá o nó da parada.
como enxergar a totalidade sem metáforas que reduzem sua complexidade?
bom... sem respostas, sem viagens... hj tô com preguiça de pensar. ;-)
abs/bjs
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